Rumos errados - Cora Coralina

A caminhada ...
 Amassando a terra.
 Carreando pedras.
 Construindo com as mãos
 sangrando
 a minha vida.

 Deserta a longa estrada.
 Mortas as mãos viris
 que se estendiam às minhas.
 Dentro da mata bruta
 leiteando imensos vegetais,
 cavalgando o negro corcel da febre,
 desmontado para sempre.

 Passa a falange dos mortos ...
 Silêncio! Os namorados dormem.
 Os poetas cobriram as liras.
 Flutuam véus roxos
 no espaço.


Deixa-me seguir para o mar - Mário Quintana


Tenta esquecer-me...
Ser lembrado é como evocar
Um fantasma... Deixa-me ser o que sou,
O que sempre fui, um rio que vai fluindo...
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
Me recamarei de estrelas como um manto real,
Me bordarei de nuvens e de asas,
Às vezes virão a mim as crianças banhar-se...
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar,
As imagens perdendo no caminho...
Deixa-me fluir, passar, cantar...
Toda a tristeza dos rios
É não poder parar!


Noite - Cecília Meireles


Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se enconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum.
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo:
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
Em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! – Sensitiva
tocada.


Cai chuva. É noite. - Fernando Pessoa


Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
        Substitui o calor.
P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.
        Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém para mim.
        Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
        E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
        Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
        A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
        Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
        Final do inútil bem.

Que se quer, e, se veio, se desconhece
        Que, se for, seria
O tédio de o haver... E a chuva cresce
        Na noite agora fria.


Quantos Seremos? - Miguel Torga

Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Órfã na janela - Adélia Prado


Estou com saudades de Deus,
uma saudade tão funda que me seca
Estou como palha e nada me conforta.
O amor hoje está tão pobre, tem gripe
meu hálito não está para salões.
Fico em casa esperando Deus,
cavacando a unha, fungando meu nariz choroso,
querendo um pôster dele, no meu quarto,
gostando igual antigamente
da palavra crepúsculo.
Que o mundo é desterro eu toda vida soube.
Quando o sol vai-se embora é pra casa de Deus que vai
pra casa onde está meu pai.


Úmido - Cecília Meireles


Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada
— tempo inseguro do tempo! —
sombra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.
Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,

— lábio da voz sem ventura! —
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.
A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,

— sozinha, com o seu perfume! —
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.
Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
— de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.


Atraso pontual - Paulo Leminski


Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bênçãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?



Eric Clapton - Autumn Leaves

Soneto do amigo - Vinícius de Moraes


Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...


Sursum - Vinícius de Moraes


Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas - lembras-te?
- que o destino das coisas separou
E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso
onde os anjos entoam madrugadas...
A névoa é como o incenso que desce e se desmancha
em brancas visões que vão subindo...
- Vão subindo as colunas do céu... (cisnes em multidão!)
como os olhares serenos estão longe!...

Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora,
o sangue escorre do coração dos vossos santos
Oh, Mãe das Sete Espadas...
Os anjos passeiam com pés de lã sobre as teclas dos velhos harmônios...
Oh, extensão escura de fiéis!
Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da gaze eucarística
Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.

Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei...
Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa
dentro do perfume do incenso em ondas!
No branco lajedo os passos caminham,
os anjos farfalham as vestes de seda.

Homens, derramai-vos como a semente pelo chão!
o triste é o que não pode ter amor...
Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo,
zumbindo, parando no ar.

Homens, crescei da terra como as sementes
e cantai velhas canções lembradas...
Vejo chegar a procissão de arcanjos -
seus olhos fixam a cruz da consagração que se iluminou no espaço
Cantam seus olhos azuis, tantum ergo!
- de suas cabeleiras louras brota o incêndio impalpável da destinação

Queimam... alongam em êxtase os corpos de cera,
e crepitando serenamente a cabeça em chamas
Voam - sobre o mistério
voam os círios alados cruzando o ar um frêmito de fogo!...

Oh, foi outrora, quando nascia o sol -
Tudo volta, eu dizia
- e olhava o céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos
como o impossível equilíbrio
Balançando o imenso turíbulo do tempo
sobre a inexistência da humana serenidade.


Feliz Só Será - Johann Wolfgang von Goethe

 
Feliz só será
 A alma que amar.

 Estar alegre
 E triste,
 Perder-se a pensar,
 Desejar
 E recear
 Suspensa em penar,
 Saltar de prazer,
 De aflição morrer-
 Feliz só será
 A alma que amar.


Edson Cordeiro - Lovesong

Explicação da eternidade - José Luís Peixoto


Devagar,
o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo,
o amor transforma-se em tempo,
a dor transforma-se em tempo.

os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.


Nossa sabedoria é a dos rios - Carlos Nejar

Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.

Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.

E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.


Pablo Neruda


Amo o amor que se reparte
em beijos, leite e pão.

Amor que pode ser eterno
mas pode ser fugaz.

Amor que se quer libertar
para seguir amando.

Amor divinizado que vem vindo.
Amor divinizado que se vai.


A sombra - Humberto Ak'ab'al


Ele dançava
como nunca havia dançado,
e seus olhos eram para ela.

— Com quem dança ele?
Perguntou uma voz.

— Com uma sombra,
respondeu o vento.


Horário do Fim - Mia Couto


morre-se nada 
quando chega a vez 

é só um solavanco 
na estrada por onde já não vamos 

morre-se tudo 
quando não é o justo momento 

e não é nunca 
esse momento


Epigrama nº 9 - Cecília Meireles


O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?