Soneto do amigo - Vinícius de Moraes
Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.
É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.
Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.
O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica...
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Vinícius de Moraes
Sursum - Vinícius de Moraes
Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas - lembras-te?
- que o destino das coisas separou
E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso
onde os anjos entoam madrugadas...
A névoa é como o incenso que desce e se desmancha
em brancas visões que vão subindo...
- Vão subindo as colunas do céu... (cisnes em multidão!)
como os olhares serenos estão longe!...
Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora,
o sangue escorre do coração dos vossos santos
Oh, Mãe das Sete Espadas...
Os anjos passeiam com pés de lã sobre as teclas dos velhos harmônios...
Oh, extensão escura de fiéis!
Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da gaze eucarística
Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.
Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei...
Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa
dentro do perfume do incenso em ondas!
No branco lajedo os passos caminham,
os anjos farfalham as vestes de seda.
Homens, derramai-vos como a semente pelo chão!
o triste é o que não pode ter amor...
Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo,
zumbindo, parando no ar.
Homens, crescei da terra como as sementes
e cantai velhas canções lembradas...
Vejo chegar a procissão de arcanjos -
seus olhos fixam a cruz da consagração que se iluminou no espaço
Cantam seus olhos azuis, tantum ergo!
- de suas cabeleiras louras brota o incêndio impalpável da destinação
Queimam... alongam em êxtase os corpos de cera,
e crepitando serenamente a cabeça em chamas
Voam - sobre o mistério
voam os círios alados cruzando o ar um frêmito de fogo!...
Oh, foi outrora, quando nascia o sol -
Tudo volta, eu dizia
- e olhava o céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos
como o impossível equilíbrio
Balançando o imenso turíbulo do tempo
sobre a inexistência da humana serenidade.
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Feliz Só Será - Johann Wolfgang von Goethe
Feliz só será
A alma que amar.
Estar alegre
E triste,
Perder-se a pensar,
Desejar
E recear
Suspensa em penar,
Saltar de prazer,
De aflição morrer-
Feliz só será
A alma que amar.
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Goethe
Explicação da eternidade - José Luís Peixoto
Devagar,
o tempo transforma
tudo em tempo.
o ódio transforma-se
em tempo,
o amor transforma-se
em tempo,
a dor transforma-se em
tempo.
os assuntos que
julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais
permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar
em tempo.
por si só, o tempo não
é nada.
a idade é nada.
a eternidade não
existe.
no entanto, a
eternidade existe.
os instantes dos teus
olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu
sorriso eram eternos.
os instantes do teu
corpo de luz eram eternos.
foste eterna até ao
fim.
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José Luís Peixoto
Nossa sabedoria é a dos rios - Carlos Nejar
Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.
Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.
E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.
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Carlos Nejar
Pablo Neruda
Amo o amor que se reparte
em beijos, leite e pão.
Amor que pode ser eterno
mas pode ser fugaz.
Amor que se quer libertar
para seguir amando.
Amor divinizado que vem vindo.
Amor divinizado que se vai.
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Pablo Neruda
A sombra - Humberto Ak'ab'al
Ele dançava
como nunca havia dançado,
e seus olhos eram para ela.
— Com quem dança ele?
Perguntou uma voz.
— Com uma sombra,
respondeu o vento.
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Humberto Ak'abal
Horário do Fim - Mia Couto
morre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
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Mia Couto
Epigrama nº 9 - Cecília Meireles
O vento voa,
a noite toda se atordoa,
a folha cai.
Haverá mesmo algum pensamento
sobre essa noite? sobre esse vento?
sobre essa folha que se vai?
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Cecília Meireles
Uns - Ricardo Reis
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele.
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Fernando Pessoa
O vento e a canção - Mário Quintana
Só o vento é que sabe versejar:
Tem um verso a fluir que é como um rio de ar.
E onde a qualquer momento podes embarcar:
O que ele está cantando é sempre o teu cantar.
Seu grito é o grito que querias dar,
É ele a dança que ias tu dançar.
E, se acaso quisesses te matar,
Te ensinava cantigas de esquecer.
Te ensinava cantigas de embalar...
E só um segredo ele vem te dizer:
- é que o voo do poema não pode parar.
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Mário Quintana
Itinerário - Cecília Meireles
Primeiro, foram os verdes
e águas e pedras da tarde,
e meus sonhos de perder-te
e meus sonhos de encontrar-te...
Mas depois houve caminhos
pelas florestas lunares,
e, mortos em meus ouvidos,
mares brancos de palavras.
Achei lugares serenos
e aromas de fonte extinta.
Raízes fora do tempo,
com flores vivas ainda.
E eram flores encarnadas,
por cima das folhas verdes.
(Entre os espinhos de prata,
só meus sonhos de perder-te...)
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Cecília Meireles
Caixinha mágica - Roseana Murray
Fabrico uma caixa mágica
para guardar o que não cabe
em nenhum lugar:
a minha sombra
em dias de muito sol,
o amarelo que sobra
do girassol,
um suspiro de beija-flor,
invisíveis lágrimas de amor.
Fabrico a caixa com vento,
palavras e desequilíbrio,
e para fechá-la
com tudo o que leva dentro,
basta uma gota de tempo.
O que é que você quer
esconder na minha caixa?
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Roseana Murray
Fio - Cecília Meireles
No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Tu não vês o jogo perdendo-se
como as palavras de uma canção.
Passas longe, entre nuvens rápidas,
com tantas estrelas na mão...
- Para que serve o fio trêmulo
em que rola o meu coração?
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Cecília Meireles
Chuva de vento - Mauro Mota
De que distância
chega essa chuva
de asas, tangida
pela ventania?
Vem de que tempo?
Noturna agora
a chuva morta
bate na porta.
(As biqueiras da infância, as lavadeiras
correm, tiram as roupas do varal,
relinchos do cavalo na campina,
tangerinas e banhos no quintal,
potes gorgolejando, tanajuras,
os gansos, a lagoa, o milharal.)
De onde vem essa
chuva trazida
na ventania?
Que rosas fez abrir?
Que cabelos molhou?
Estendo-lhe a mão: a chuva fria.
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Mauro Mota
O vagalume - Dora Ferreira da Silva
Inquieta a escuridão.
Acende e apaga a lanterna
sem cessar.
Busca a perfeição.
A manhã o ilumina
insatisfeito
e opaco.
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Dora Ferreira da Silva
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