Mostrando postagens com marcador Vera Lúcia de Oliveira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Vera Lúcia de Oliveira. Mostrar todas as postagens

A culpa - Vera Lúcia de Oliveira


o que é
a culpa?

senão a mão que
não existe mais
aguilhoando
o mesmo cão

senão o olho desse cão
que não existe
abocanhando
a mesma mão

a poesia dói dentro de mim - Vera Lúcia de Oliveira


A poesia dói dentro de mim
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos


Por trás - Vera Lúcia de Oliveira

por trás do olho
sustar é perigoso

por trás do olho
respira sempre um outro
olho suspeitoso
palpar por dentro é vão
por onde um novo olho sobreposto
espreita o mesmo vão


Tem palavras - Vera Lúcia de Oliveira

tem palavras que têm cicatrizes
a palavra apego, a palavra parto
a palavra tempo
dentro elas são de madeira
dentro elas se impregnam
quando a chuva bate na janela
penetra os poros

pelo fogo da fala - Vera Lúcia de Oliveira

pelo fogo das palavras
pela sarça ardente das palavras
pisando por rugas de telhas
enquanto o coração crescia

pelo fogo da fala
pelo pavio secreto da língua
pela fagulha ardente
crescia meu coração
como crescem as folhas
que o vento arrasta no ardor da combustão


paisagem - Vera Lúcia de Oliveira


solidão de morros
solidão de tetos mudos
solidão congênita de estradas
um cão manco um passante
apressado
uma touceira
um muro
uma calçada


Moenda - Vera Lúcia de Oliveira

 moendo e remoendo grãos
graves como dentro
os vórtices
o sol a tarde
o osso mole dos panos
o barulhinho do sangue
raspando-se nos ângulos
aragem de vozes
viragens de tempo
sem troco dores
dores
e a pele e a carne
e a roupa
na trituração

As três - Vera Lúcia de Oliveira



a primeira dor que aprendi
foi a dos galos
sem rastros
que sumiam de abrupto

a primeira dor que aprendi
foi a dos galhos penados
nos piados do escuro

a primeira dor que aprendi
foi a do estalido dos ossos
que o pai roçava na noite


dedicatória - Vera Lúcia de Oliveira

aos pingos
que tramam contra a maré
aos pingos que batem
nos vidros
e se trincam sem ruído
aos pingos como
leves
sulcos
com só no bojo
o instante do vinco

meninas - Vera Lúcia de Oliveira

as meninas que da alma pulam
brincam de esticar
o tempo

com suas saias rodadas
dançam a canção mais pura
que aprenderam
correndo
entre as junturas dos ossos.

chama - Vera Lúcia de Oliveira

                         
a chama crepita
ardência ou olho assolador

fiapo que escapou
das mãos de Deus
antes de ter sido modelado
antes de ter recebido
pendor à introspecção
e à síntese

poema para Manoel de Barros - Vera Lúcia de Oliveira

rasgo as veias do papel
e retiro
teu musgo
teu visgo de lesma
teu olho de olho
teu corpo
enroscado em ventre
de caracol
rasgo
rastejo relva
arranho sustos
resvalo em vírgulas
chupando lodo
e lágrima
de bicho
à espera
que a dor galope as águas
sem atropelar

os pássaros - Vera Lúcia de Oliveira


os pássaros de pedra dilatam as oferendas
os pássaros de carne batem-se contra as grades
os pássaros de lata arrulham nas ferrovias dos nervos
os pássaros de madeira mascam o macio dos músculos
os pássaros de papel voam para dentro das crases
os pássaros de carvão rabiscam suas asas no ventre
os pássaros de fogo puxam os pássaros de chuva
os pássaros de pano acalentam os pássaros de pranto


aprendi o vento - Vera Lúcia de Oliveira


aprendi o vento nas traves doendo
aprendi no escuro das traves
aprendi nas telhas
moendo seu sopro
aprendi como um bicho
aprende o uivo
de outro bicho
como a viga
o estalido
de outra viga


Terceiro mundo do céu - Vera Lúcia de Oliveira

no terceiro mundo
do céu
vão alminhas
pisoteadas
vão crianças
cuja dor come a infância

e bêbados do nada
trabalhadores do próprio luto
famintos de poesia
e pão

sombras
ali se debruçam
à espera das tubas
do juízo