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Madrugada - Adolfo Casais Monteiro


Ah! Este poema das madrugadas,
que há tanto tempo enrodilhado
num sem-fim de estados de alma
me obcecava, tirânico,
sem se deixar fixar! ...

Madrugada... e esta solidão crescendo,
esta nostalgia maior, e maior, e maior,
de não se sabe o quê
— nunca se sabe o quê...
que haverá nestas horas sozinhas e geladas,
para assim trazer à tona as indefinidas mágoas,
as saudades e as ânsias sem motivo
— de que não sabemos o motivo?...

Vieram as saudades do tempo de menino
— ou dum paraíso lá não sei onde?
Ah! que fantasmas pesaram sobre os ombros,
que sombras desceram sobre os olhos,
que tristeza maior fez maior o silêncio?
A que vem esse calor distante e absorto,
esse calar, esses modos distraídos?
Meu pobre sonhador! a esta hora
porventura se desvenda a Suprema Inutilidade?
e a definitiva ilusão de tantos gestos?
Interroga, interroga...
vai sonhando,
sem que saibas sequer o caminho que segues
vai, distraído e pensativo,
alheio de hoje,
vivendo já o derradeiro segundo...

Que a madrugada tem o pungir das agonias,
mas alheio, como o fim dum pesadelo...


Fado - Adolfo Casais Monteiro



Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração

Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.

Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
- só emoção.

É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao deus dará.

Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
Como um irmão.


Ato de contrição - Adolfo Casais Monteiro

Pelo que não fiz, perdão!
Pelo tempo que vi, parado,
correr chamando por mim,
pelos enganos que talvez
poupando me empobreceram,
pelas esperanças que não tive
e os sonhos que somente
sonhando julguei viver,
pelos olhares amortalhados
na cinza de sóis que apaguei
com riscos de quem já sabe,
por todos os desvarios
que nem cheguei a conceber,
pelos risos, pelas lágrimas,
pelos beijos e mais coisas,
que sem dó de mim malogrei

— por tudo, vida, perdão!


Pingos de chuva - Adolfo Casais Monteiro


Caem,
Gordas, sonoras,
Monótonas pingas de chuva,
- Espaçadas -
E indolentes
Vão marcando uma toada:
Ping pang - ping pang,
As pingas
De chuva do Outono pardo.
Espapaçada
A terra mole absorve
As vagas de chuva densa
Que lenta vai caindo,
Em pingas grossas, sonoras.
E ao cair,
A chuva bate o compasso
Com o som dum contrabasso...
Ping...
Pang...
Ping...
Pang…

Poeta - Adolfo Casais Monteiro

Poeta: uma criança em frente do papel,
Poema: os jogos inocentes,
invenções do menino aborrecido e só
A pena joga com palavras ocas,
Atira-se ao ar a ver se ganha o jogo.
Os dados caem: são o poema: Ganhou.

Vem vento, varre! Adolfo Casais Monteiro


Vem vento, varre

sonhos e mortos.

Vem vento, varre
medos e culpas.

Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
noturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só cobardia.

Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.

Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem vento, varre!